sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Os labirintos da cultura

Para cada área do conhecimento, uma definição. Para cada reflexão científica, uma concepção. Não existe uma única noção acerca do termo cultura, que em latim, sua origem, significa cultivar o solo, cuidar. Por isso, até hoje, no ramo agrícola (agricultura) diz-se cultura do arroz, da soja, do milho. Na sociologia, na filosofia, na antropologia, nas artes, na literatura e na comunicação, cultura tem diferentes entendimentos e versões.

Não vou tratar aqui das tantas noções sobre o tema. No entanto, vale um passeio por algumas concepções de cultura em Raymond Williams, um dos primeiros a pensar os Estudos Culturais, quando o mundo se transformava com o impacto da Revolução Industrial e as Guerras Mundiais, e em Néstor García Canclini, autor que se ocupa, especialmente, dos processos culturais na América Latina em um planeta que novamente se modifica, especialmente a partir das novas tecnologias.

Época e fatos históricos parecem influir no significado do termo. Maria Elisa Cevasco lembra que a partir do século XVIII a palavra cultura passou a ser utilizada como substantivo abstrato para designar desenvolvimento humano. Com as mudanças sociais advindas da Revolução Industrial, no decorrer do século XIX, cultura deixa de ser um processo de aprimoramento das faculdades mentais e passa a ter o sentido de crítica àquela sociedade em plena transformação. Em meados do século XX, estudar uma sociedade em ebulição que busca uma nova organização depois da Segunda Guerra pelo viés da cultura não apenas ganha importância na Europa, como em pouco tempo se transforma em disciplina acadêmica na Inglaterra a partir, especialmente, de Raymond Williams e os Estudos Culturais.

Williams percebeu o crescimento dominante dos meios de comunicação de massa e uma espécie de deslizamento das disputas de poder do epicentro econômico e político para o âmbito cultural. “As grandes oposições entre as espécies humanas e a fonte dominante dos conflitos serão culturais”, previu Samuel Huntington no ensaio The Clash of Civilization, de 1993. Ao contrário de Huntington, Williams acreditava que cultura não poderia estar apartada da vida cotidiana, ou seja, das questões econômicas, sociais e políticas.

O pensamento de Williams, expresso em Cultura e Sociedade, sua principal obra, é um divisor de águas. Antes dele, cultura era vista como privilégio de poucos, de uma minoria. A partir dele, seria pulverizada entre a população, principalmente por meio da educação. A questão central de sua proposição é que todos tenham acesso ao conhecimento e aos meios de produção cultural. “A idéia de uma cultura em comum é apresentada como uma crítica e uma alternativa à cultura dividida e fragmentada que vivemos”. É a partir do materialismo cultural de Williams que ele estabelece a ligação entre este e a vida social. Esta teoria abre aos estudos culturais a possibilidade de descrever como acuidade o funcionamento da cultura na sociedade contemporânea e de buscar sempre as formas do emergente, do que virá.

Desde Raymond Williams, o mundo tem se transformado de maneira ainda mais acelerada do que à época da Revolução Industrial e o segundo Pós-Guerra, episódios que marcaram os séculos XIX e XX. Este lapso de tempo, no entanto, não ajudou a definir o termo cultura. Ao contrário. Segundo Néstor García Canclini, “há décadas, aqueles que estudam a cultura experimentam a vertigem das imprecisões”. Mas o autor não se exime de apresentar a mais óbvia definição da palavra em questão, apontando para “quando se faz com que se assemelhe a educação, ilustração, refinamento, informação ampla. Nesta linha, cultura é o acúmulo de conhecimento e aptidões intelectuais e estéticas”.

Canclini sabe que a definição sobre cultura citada acima não encerra o debate, apenas dá o pontapé inicial. Há um caminho sinuoso para elucidar a questão. No entanto, ele complica um pouco mais a situação ao incluir o consumo da sociedade neste guarda-chuva e busca cimentar seu pensamento lembrando Jean Baudrillard e Pierre Bourdieu e suas respectivas teorias acerca de cultura. O primeiro divide o problema em tipos de valor na sociedade. Além dos valores de uso e de troca, Baudrillard acrescenta os valores signo e símbolo. Parece claro que o valor de uso de um carro está na sua função primeira, ou seja, transportar pessoas.

O valor de troca se dá pelo mercado, quanto vale o carro dependendo do seu estado de conservação, por exemplo. Já o valor signo a que se refere Baudrilhard reside, de acordo com Canclini, no “conjunto de conotações, de implicações simbólicas que estão associadas a este objeto”. O valor símbolo se estabelece quando o carro teria sido, por exemplo, o presente dado por alguém. Canclini defende que esta classificação permite diferenciar o socioeconômico do cultural. “ O [valor] de uso e o [valor] de troca têm a ver principalmente, não unicamente, com a materialidade do objeto, com a base da vida material. Os dois últimos [valor signo e valor símbolo] referem-se à cultura, aos processos de significação”.

Ao citar Bourdieu, Canclini lembra que aquele autor estabeleceu a diferença entre cultura e sociedade na medida em que a segunda está envolvida com relações de força (valor de uso e de troca), entrelaçadas com relações de sentido, “que organizam a vida social, as relações de significação. O mundo das significações, do sentido constitui a cultura”.

Fazendo um paralelo entre os pensamentos de Williams e Canclini, podemos dizer que a cultura comum pretendida pelo primeiro não parece ter se consolidado plenamente, embora o desenvolvimento tecnológico e comunicacional, como a Internet, tenha contribuído muito para uma espécie de pulverização de conhecimentos mundo afora – mas não em todas as partes –, ou como prefere chamar Pierre Lévy, para o nascimento de uma memória coletiva, de uma inteligência coletiva. O que Canclini acredita, no entanto, ser cultura, não está tão longe do idealismo de Williams, ainda que não sejam teorias idênticas. Para o autor latino-americano, todas as práticas sociais contêm uma dimensão cultural, mas nestas práticas nem tudo é cultura. Definir cultura, já se vê, é um debate longo e, talvez, sem fim.