terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O ofício de decifrar


Das idéias que permeiam o pensamento de Jesús Martín-Barbero em relação à comunicação, uma, em especial, me chama a atenção: a de que as novas tecnologias não apenas servem para provocar mudanças no cenário comunicacional ou modificar o comportamento das pessoas, pura e simplesmente, mas influenciam o consumo cultural. Ao contrário da razão hegemônica vigente, de que a tecnologia tem o poder de mediar as relações entre as pessoas e o mundo, o autor sentencia que “o que a tecnologia medeia hoje mais intensa e aceleradamente é a transformação da sociedade em mercado, e deste em principal agenciador da mundialização”[1].

Para desbravar o caminho, é preciso virar a lente, observar a mídia e sua tecnologia que hoje impulsionam os processos de comunicação a partir de um ponto de vista mais amplo, especialmente a partir da intensificação do processo de globalização e os movimentos transnacionais que, segundo o autor, “ultrapassarão os alcances teóricos da teoria do imperialismo, obrigando-nos a pensar uma trama nova de territórios e de atores, de contradições e conflitos”[2].

Para muitos autores, a própria noção de globalização, entre eles George Yúdice, tem como fenômeno principal o consumo. “A ênfase maior no contexto global das práticas culturais nos anos 1980 e 1990 é o resultado dos efeitos da liberalização do comércio, do maior alcance global das comunicações e do consumismo”[3].


Nesta arquitetura, Ortiz trilha caminho semelhante ao de Yúdice e vai além. Para ele, essa espécie de eliminação de territórios demarcados, denominado por muitos como “desterritorialização” tem como fulcro o mercado consumidor, no qual são “forjadas referências culturais mundializadas”[4]. Comenta Ortiz:

os personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, histórias em quadrinhos, televisão, cinema constituem-se em substratos desta memória. Nela se inscrevem as lembranças de todos. As estrelas de cinema Greta Garbo, Marlyn Monroe ou Brigitte Bardot, cultuadas nas cinematecas, pôsters e anúncios, fazem parte de um imaginário coletivo mundial. Neste sentido, pode-se falar de uma memória cibernética, banco de dados das lembranças desterritorializadas dos homens. Marcas de cigarro, carros velozes, cantores de rock, produtos de supermercado, cenas do passado ou de sience-fiction são elementos heteróclitos, estocados para serem utilizados a qualquer momento. A memória internacional-popular contém traços da modernidade-mundo, ela é o seu receptáculo. Esses objetos-souvenirs são carregados de significados e, ao se atualizarem, povoam e tornam o mundo inteligível. Daí, ao contemplá-los, esta sensação de familiaridade que nos invade[5].

Neste cenário, Barbero procura estabelecer, do ponto de vista da comunicação, o que ele chama de “novo mapa”. Sob este prisma, o autor defende que uma outra geografia da comunicação possa dar conta da relevância das mídias nas relações de produção, consumo e poder. Para isso, Barbero define como eixos deste mapa as matrizes culturais, os formatos industriais e as lógicas de produção e de recepção. Para ele, as matrizes culturais, que são uma espécie de reservatório de experiências tradicionais, percorrem um trajeto ao longo do tempo até serem ratificadas, reforçadas pelos formatos industriais.

Um exemplo bem flagrante desta estrutura – e muito próxima de nós, gaúchos – é a própria exploração do gauchismo por parte da mídia do Rio Grande do Sul, com ênfase para o Grupo RBS, em geral, e o jornal Zero Hora, em particular.
Na outra ponta do mapa, Barbero propõe o eixo sincrônico, que liga as lógicas de produção da mídia com as lógicas de recepção. Esta relação estabelece o que o autor chama de “competências de recepção ou de consumo”.

É interessante notar que nesta espécie de losango de forças, outros fenômenos atuam simultaneamente, como a tecnicidade, a ritualidade, a socialidade e a institucionalidade. Se bem compreendo o que Barbero quer dizer, é a partir deste ciclo de fenômenos que se retroalimentam diariamente que a mídia e sua lógica de produção enredam a sociedade na teia de um consumo cultural mais ou menos padronizado, ainda que nem sempre os receptores apreendem totalmente o que os formatos industriais estabelecem.

No entanto, o mapa de Barbero nos indica que o poder da mídia está tão presente no espectro social que se tornou um ritual (pessoas só saem de casa depois da telenovela ou precisam ler o jornal nas primeiras horas da manhã, por exemplo), uma ferramenta de socialidade (o que está na mídia passa a ser uma prática social) e uma força institucional (os discursos da mídia têm grande relevância e regulam os próprios discursos dos cidadãos).

Esta idéia de que a sociedade se transforma em mercadoria a partir do consumo cultural engendrado pelo entrecruzamento de lógicas de produção/lógicas de recepção/matrizes culturais/formatos industriais encontra repouso em algumas teorias de outro autor, Mike Featherstone. Segundo ele, “a sociedade de consumo [...] é um vasto complexo de signos e imagens fragmentárias”[6].


Neste consumo de signos, afirma Featherstone, a importância reside “na capacidade de remodelar incessantemente o aspecto simbólico ou cultural da mercadoria”[7]. Ou seja, esse “remodelar incessantemente” parece ser a retroalimentação dos fenômenos assinalados por Barbero e que resulta neste novo consumo cultural mediado pelo poder midiático. Afirma Barbero:

É a partir das novas maneiras de juntar-se e excluir-se, de deconhecer-se e se reconhecer que adquire consistência social e relevância cognitiva aquilo que passa em e pelas mídias e pelas nova tecnologias de comunicação. Pois foi aí que as mídias começaram a construir o público, a mediar na produção de imaginários que de algum modo integram a desgarrada experiência urbana dos cidadãos, seja substituindo a neutralidade da rua pela espetacularização televisiva dos rituais da política, seja desmaterializando a cultura e aliviando-a de sua espessura histórica mediante tecnologias que, como as redes telemáticas ou os videogames, propõem a hiper-realidade e a descontinuidade como hábitos perceptivos dominantes[8].

Nesta perspectiva de ritualidade, ou seja, de repetição dos formatos industriais midiáticos inserida no cotidiano social, Barbero não se engana quando diz que “é o que na comunicação há de permanente reconstrução do nexo simbólico: ao mesmo tempo repetição e inovação, âncora na memória e horizonte”[9]. Parece ser o eterno ofício de decifrar.


[1] Martín-Barbero, Jesús. Ofício de cartógrafo: Travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Loyola, 2004, p. 229.
[2] Ibidem, 2004, p. 217.
[3] YÚDICE, George. A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 124.
[4] ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 111
[5] Ibidem, 2000, p. 126.
[6] FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: Globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997, p. 109.
[7] Ibidem, 1997, p. 109.
[8] BARBERO, op. cit. p. 220.
[9] Ibidem, 2004, p. 231.