sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O mundo tecnológico não tem todas as respostas


Entre tantos estudos, o filósofo alemão Martin Heidegger, um dos principais pensadores do século XX, se ocupou em decifrar o conhecimento humano a partir do que chamava de “mundo da vida”, ou seja, o conhecimento a partir da vivência, do vivido. Em um de seus grandes trabalhos publicados, Ser e Tempo, Heidegger trata da fenomenologia, uma teoria de Husserl, de quem Heidegger foi discípulo, e que, de forma resumida, dá origem ao Historicismo, uma corrente filosófica que serviu de contraponto ao positivismo, cuja única forma de se chegar à verdade seria por meio de comprovações científicas. O ponto de partida da fenomenologia é o mundo, que nos determina, é a reflexão e não o imediatismo nem a teoria e o método.

Trilhando este caminho, Heidegger busca compreender como se estrutura o mundo para nós, que aqui estamos. Para o filósofo alemão, “nós somos no mundo”. Esta afirmação encontra repouso no fato de que o mundo em que vivemos está sempre estruturado quando a ele chegamos. O mundo que nos recebe está pronto. Por isso, “somos temporalmente”, afirma o professor Francisco Rüdiger, autor de Martin Heidegger e a questão da técnica (Sulina, 2006), obra que serve de base para a construção deste comentário.

Em um fragmento do manuscrito de Der Anklang, que integra o preâmbulo do livro de Rüdiger[1], o autor lembra: "Diz-se que a técnica é neutra - o homem é que a converte em uma bênção ou uma maldição. Porém, o que é o homem? O que é a técnica?" Em resumo, o filósofo busca estabelecer a relação entre homem e técnica. Esta era a grande preocupação de Heidegger: o ser e seu destino no Ocidente. “Para ele, tudo se resume ao ser: Somente o homem, entre todos os entes, experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: é o ente que é”[2].

Uma idéia básica de Heidegger sobre o homem encontra-se logo no começo do livro de Rüdiger.

[...] em sua visão (de Heidegger), somos entes para os quais está interditado o próprio conhecimento e, por isso, somos algo que pouco tem a ver com o que se esgota na tecnologia maquinística. Nenhum de nós pode saber o que é o homem: é ele uma transição, um sentido uma tempestade que varre nosso planeta, um retorno ou um enfado para o deuses?

Ao pensar o destino do ser, Heidegger percebe que algo mais está ligado aos entes e passa, então, a se preocupar também com a técnica e, assim, a relacionar homem e técnica. Do século XVII, época em que se origina o pensamento tecnológico a partir do surgimento das máquinas, até o século XX, acredita-se que a técnica é o meio para criar um mundo mais humano. Heidegger, porém, não pensa sobre a técnica de forma tão rasa. Para ele, pensar a técnica é refletir sobre ela para compreender como a técnica constitui o mundo e o futuro do homem. Afirma Rüdiger:

Heidegger tende a ser visto por muitos interessados na matéria como um filósofo da técnica, mas isso só à primeira vista é verdadeiro: na realidade, o filósofo tentou ser um pensador do problema ou questão da técnica. [...] O problema da técnica é, para ele, o que ela coloca ao futuro do ser humano, para além da forma e do sentido como esse ser foi definido no Ocidente[3].

A técnica, para o pensador, “é uma forma de pensar através da qual o ser se revela ao homem, via a fabricação de imagens, utensílios e situações”[4]. De acordo com Rüdiger, “a essência da técnica não é técnica, não é o cálculo desses elementos, juízo que vale para sua origem tanto quanto para a época moderna e, agora, para a sua atual etapa de acabamento”[5]. Acrescenta o autor:

A técnica é uma forma de pensar que se articula com os gregos e tem sua essência originária no ser humano, mas por isso mesmo sua essência muda de acordo com o modo como esse ser nos interpela historicamente. Na origem, a forma de saber que é a técnica era uma extensão da phisis: a phisis era a essência da técnica. Ainda quando desse entendimento se desligou, não foi de imediato que a técnica passou a ser vista como cálculo entre meios e fins ou princípio de reconstrução da existência. Quem ou o que impõe ou decide esse cálculo e seus projetos futuristas, portanto, é que é a questão essencial da técnica, é que responde à pergunta sobre qual é a essência ou o sentido da técnica moderna. Originariamente, a técnica era uma projeção da phisis [...] portanto, muito mais um modo de ser do que de pensar, o que ainda é, a partir do momento em que passa a depender do que o filósofo chama de o matemático. Quando o matemático se impõe, à natureza ou alguma outra figura, a técnica, por essa via, assume o sentido de cálculo[6].

Por matemático entende-se um sistema, uma relação nossa com o mundo. Nietzsche falava da “vontade de matematizar”, ou seja, vontade de poder. Trata-se de um princípio de identidade do mundo, é um princípio metafísico. É importante salientar que a técnica não é metafísica. Mas o modo como ela é empregada é metafísico. “Há sempre o elemento metafísico junto com a técnica”, lembra Rüdiger.

A preocupação de Heidegger com o futuro do homem encontra eco na própria evolução do pensamento tecnológico iniciado no século XVII. A expansão do capitalismo está ligada a este tipo de pensamento. Nas palavras de Rüdiger, “o capitalismo tem como fantasia o poder econômico que, por sua vez, tem como fantasia o valor”.

O pensamento tecnológico, no entanto, vai além. O que faz a diferença é a máquina, ou seja, o mundo sem o humano. Este mundo maquinístico é o próprio mundo pós-humano. Trata-se de um mundo novo, sem o homem. É o mundo do super-homem, como apontaria Nietzsche. Em outras palavras, é o mundo sem gente.

[...] o primeiro ponto a considerar é o esquecimento do ser em meio a um mundo que se torna cada vez mais tecnológico. A filosofia grega despertou-nos para a questão do ser há cerca de vinte e seis séculos. Encontramos-nos agora, porém, na época da superação ou do acabamento da metafísica: uma era que coincide embora não seja a mesma, com a época da ascensão do pensamento tecnológico, a era do imperialismo técnico planetário[7].

Na perspectiva de Heidegger, esse esquecimento do ser e, por conseqüência, o surgimento de um mundo diferente, é caracterizado pelo princípio denominado pelo pensador de armação. A armação é o princípio que cria o nosso mundo. É o nome dado por Heidegger para definir um mundo que não lida mais com o humano e a natureza como elementos principais, mas, sim, a máquina e o artifício.

A armação é a época do princípio tecnológico, que é ser máquina, o pós-humano. Em resumo, armação é o nome que Heidegger da ao sentido da técnica moderna.

A essência da armação é o ser mesmo do ente: não em geral e não desde sempre, mas apenas agora que o esquecimento do ser chegou a seu acabamento. O acontecimento que é esse acabamento do esquecimento do ser determina de maneira suprema a época acima, na medida em que agora o ser existe essencialmente sob a forma da armação[8].

É neste ponto que Heidegger alerta para alguns riscos a que o homem está exposto. Com o avanço ininterrupto da era da máquina, o filósofo passou a perceber a possibilidade “de ocorrer uma catástrofe radical contra não apenas esse ser, mas o próprio ente humano, visto se abrir com ela o projeto de fabricação artificial de todo o ser humano”, afirma Rüdiger.

O temor de Heidegger encontra repouso no fato de que se a era da armação alcança o mundo como um todo, alcança também a linguagem. E a linguagem, sabemos, é a estrutura principal da construção do mundo. Sem linguagem, sem palavra, não existe mundo. Pelo menos não o mundo tal qual conhecemos e vivemos. Portanto, se o mundo da armação já percorre o trajeto da metafísica, ou seja, da linguagem, é porque o mundo técnico começa a criar a linguagem artificial: digital. Seguindo as pistas deixadas por Heidegger, que afirma ser o mundo da armação “o perigo dos perigos”, o filósofo acredita que a linguagem artificial irá superar a metafísica e, conseqüentemente, o humano.

Ainda que devam existir sempre novas tecnologias e novas artificialidades, igualmente haverá de ter, por trás dessas novas criações, o humano, alguém com capacidade criadora. E o mundo haverá de ser sempre o mesmo, com alguns a criar – e a obter poder e força – para a maioria a reproduzir o que é criado. Mas o temor de Heidegger parece ter sentido e pode ir além.

O planeta tem sido modificado de tempos em tempos por catástrofes naturais. Isso pode ocorrer daqui a poucos milhões de anos e levar à extinção pura e simples do planeta, a menos que sejam criadas novas tecnologias capazes de evitar que a Terra seja atingida por fenômenos deste tipo. De outra parte, a própria tecnologia pode destruir o ente, como bombas nucleares, por exemplo. Artefatos deste tipo causariam uma destruição física do ente.

No entanto, talvez o grande perigo a que Heidegger se refere é o da força do mundo da armação, que, além de atingir a linguagem e substituí-la por uma linguagem artificial, poderá conduzir o humano a uma catástrofe existencial ou metafísica. Isso ocorrendo, poderia levar à modificação da identidade humana como a reconhecemos hoje em outra, pós-humana. Na conclusão do curso sobre a questão da técnica em Heidegger, Francisco Rüdiger afirma que “a concepção puramente técnica do mundo é uma fantasia utópica, porque convertido em máquina – por hipótese – o mundo não seria mais humano, teríamos dado o salto para o pós-humano”[9]. No entanto, o autor deixa no ar um alerta de que mundo tecnológico e a ciência não podem nos dar todas as respostas. Há áreas de sombras sob as quais não temos qualquer controle e continuaremos não tendo “enquanto formos humanos”.

[1] RÜDIGER, Francisco. Heidegger e a questão da técnica: Prospectos acerca do futuro do Homem. Porto Alegre: Sulina, 2006.
[2] Ibidem, 2006, p. 17.
[3] Ibidem, 2006, p. 25.
[4] Ibidem, 2006, p. 97.
[5] Ibidem, 2006, p. 98.
[6] Ibidem, 2006, p. 98.
[7] Ibidem, 2006, p. 35.
[8] Ibidem, 2006, p. 50.
[9] Ibidem, 2006, p. 236.