segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Máquina de escrever. Máquina do tempo

Levei um susto ao abrir a página 48 de Zero Hora na sexta-feira passada. Era uma matéria policial. Sempre leio esse noticiário, até porque durante muito tempo fui repórter de Polícia daquele jornal. A minha surpresa, no entanto, não se deu pelo texto ou pelo fato noticiado em si. Mas a foto, com crédito de Daniel Marenco. A foto é de uma máquina de escrever sendo utilizada pelo escrivão de polícia da delegacia de General Câmara. Uma máquina de escrever! Santo Cristo, há quanto tempo eu não via uma máquina de escrever!

Achei que os novos tempos, chamados de pós-moderno por muitos teóricos ou de modernidade líquida por Zygmunt Bauman, tivessem atropelado tudo de roldão. Mas não. O liquidificador da globalização, que mistura hábitos e costumes e desmancha tradições e culturas, parece que se esqueceu da máquina de escrever por algum motivo. Não sei se ainda existem outros exemplares como este da delegacia de General Câmara, mas não devem haver muitos outros por aí. Ainda mais assim, funcionando. O meu espanto se dá, em grande parte, porque nunca usei uma máquina de escrever. Digo, de maneira profissional. Claro, quando era criança, brincava com o equipamento do meu pai.

Sabem qual era a utilidade que eu dava para a máquina de escrever Olivetti do meu pai? Deus, lembro como se fosse hoje! Eu escrevia a escalação dos times de futebol da época.
Então, recortava cuidadosamente os nomes e os colava nos meus botões. Sim, pode não parecer, mas eu era um exímio jogador de botão. Nos dias pós-modernos chamam este esporte de “Futebol de Mesa”. Até hoje tenho os meus times de botão, que não são mais exatamente meus, mas do Filipe, que já começa a virar craque.

Mas eu falava de máquinas de escrever. Na adolescência, talvez, tenha utilizado tal ferramenta para algum trabalho escolar, não lembro. Quando comecei a estudar jornalismo, lá por 1990, na Unisinos, já tinha computador. Um ano depois, entrei para a redação do NH, em Novo Hamburgo/RS, claro. O jornal, que tem sido um pioneiro em muitos aspectos do jornalismo gaúcho, foi também o primeiro a ter a redação informatizada. Ou seja, eu já comecei minha vida profissional com teclado e tela para escrever.

Fico imaginando como seria fazer um jornal diário com máquina de escrever. Jornalistas mais antigos que eu dizem que eram bons aqueles tempos em que no final de cada dia as latas de lixo das redações ficavam abarrotadas de papel, tantas eram as vezes que os profissionais erravam o texto e tinham de começar tudo outra vez em uma lauda novinha. Eu não resistiria. Para concluir este artigo, errei, apaguei tudo e comecei de novo umas 50 vezes. Por excesso de gasto com papel, eu não resistiria em nenhuma redação daqueles bons tempos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Juro que eu me esforço

O verão é uma estação estranha para mim. Não que eu não goste de sol, mar, piscina, bebida gelada, surfe e pernas para o ar. Adoro. Aliás, até já morei na Praia do Rosa. Só que aqui, no extremo sul do país, o verão é uma época pitoresca e, em muitos casos, grotesca até. Estou me referindo ao clima que toma conta das cidades e principalmente das pessoas.

Porto Alegre, no verão, é uma capital civilizada, apesar do calor à la Senegal. Diminui o fluxo de carros, as filas são menores, há lugares sobrando nos restaurantes, bares e supermercados, as pessoas andam sem pressa e a chance de ser atropelado em algum corredor de shopping é quase zero. Por isso, a cidade melhora. É até paradoxal perceber que a cidade fica melhor quando grande parte das pessoas não está nela. Adoro Porto Alegre com pouca gente. Como é bom Porto Alegre quase sem habitantes. Sim, porque esses habitantes não estão aqui no verão. Eles vão para o litoral, especialmente. E, assim, transferem o inferno demográfico da capital para as praias.

Eu, que não entro no mar do Rio Grande do Sul há pelo menos duas décadas, sou daqueles poucos que na segunda-feira dizem, quase que com vergonha e constrangimento, que não fui à praia no final de semana. Quando digo isso, sou olhado com desconfiança. É que nesta época do ano, em Porto Alegre, é feio dizer que não fomos à praia no "findi". O chique, o bacana, é chegar na segunda-feira com cara de quem foi pra praia. Rosto avermelhado e corpo estressado com o tumulto, a ventania, a sujeira e os engarrafamentos. Chega a ser grotesco esta modinha provinciana de que temos de ir ao litoral nos finais de semana.

E mais grotesco ainda são as colunas sociais dos jornais gaúchos. Quando eu acho que vou me livrar dessas páginas no verão, pronto, lá estão elas contando onde anda aquela gente toda. Cristo, é de um provincianismo sem precedentes. Morro de rir com as legendas das fotos: “fulana de tal aproveita o sol em Bikíni, Punta del Este”. “Fulano de tal recebe os amigos em sua linda cobertura, em Punta”. “Fulaninha e fulaninho, lindos como sempre, curtem o calor em Atlântida”. Eu sei que tem muita gente que adora as páginas “sociais” dos jornais, até pela curiosidade de ver se alguém que a gente conhece aparece por ali. Compreendo. Mas eu, que entre outras coisas, me preocupo em ser um jornalista crítico do trabalho da mídia, quase não agüento. Eu me esforço, juro. Mas quase não agüento.

* Crônica publicada em http://www.gramadosite.com/ em 21/11/2007.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A década mais importante de nosso tempo

Michel Maffesoli, que abrirá o seminário 1968: Revoltas e Pós-modernidade, no próximo dia 14, na Unisinos, é um sociólogo atento. Não que outros sociólogos de renome mundial não o sejam, como Edgar Morin, de quem também sou um leitor compulsivo, e outros tantos que poderia citar aqui. Mas o que me atrai em Maffesoli é que ele percorre um caminho, digamos, marginal à visão economicista do dado social.

Não que o professor de Sociologia da Sorbonne, Paris V não se importe com isso. No entanto, não trata das questões econômicas da sociedade como se fossem determinantes e únicas. Teórico da Comunicação, ele parte de uma espécie de cesura entre a sociologia positivista, para a qual cada coisa é apenas um sintoma de uma outra coisa, e a Sociologia Compreensiva, “que descreve o vivido naquilo que é, contentando-se, assim, em discernir as visadas dos diferentes atores envolvidos”.

Em outras palavras, o que este autor propõe é que a Sociologia Compreensiva seja o que ele costuma chamar de a “sociologia do lado de dentro”. “O pensador”, afirma Maffesoli, “não se deve abstrair; é que ele faz parte daquilo que descreve e, situado no plano interno, é capaz de manifestar uma certa visão de dentro, uma in-tuição”. Na Sociologia Compreensiva, Maffesoli utiliza o formismo como metodologia, ou seja, a prática também utilizada por G. Simmel que estuda as formas da vida social. Maffesoli defende este recurso metodológico especialmente quando se pretende dar conta da força de estruturação da imagem de uma socialidade.

Em O conhecimento comum: Compêndio da sociologia compreensiva, ele pergunta o que é pertinente a um sociólogo se não “saber dar conta da riqueza do dado social, em perpétua ebulição”. Em vez de reduzir a questão ao que chama de “menor denominador comum”, Maffesoli prefere “compreender, em sentido estrito, estes entrecruzamentos de paixões e razões, de sentimentos e cálculos, de devaneios e ações que se chama sociedade”. Trata-se, portanto, de uma metodologia baseada na vida cotidiana, buscar apresentar as formas sociais como elas são. E para isso, é bom que se diga, não há um modelo pré-definido.


Cada forma tem a sua especificidade. Como o próprio nome desta teoria nos indica, a sociologia compreensiva está mais interessada em compreender do que explicar. Compreender o social é mostrá-lo como ele se apresenta e não como gostaríamos que fosse. É o fluxo natural de um rio que, uma vez desviado, transformará também sua forma. Por isso, a sociologia compreensiva, a partir do conhecimento comum, evita desviar os leitos dos rios, não estabelece um dever-ser ao objeto social justamente para não mudar seu curso. Ao refletir sobre o papel da comunicação nas sociedades atuais, onde “tudo é permeável”, o autor encontra no termo tribalismo uma forma de compreender essas sociedades.


Com Michel Maffesoli na Unisinos, talvez possamos compreender um pouco melhor a ebulição mundial de 1968, proposta por tribos que tentaram colocar na agenda mundial da época uma pauta que incluísse a paz, o amor e a liberdade. O anseio daquelas tribos não se confirmou na prática, como se viu. O mundo, sabemos, sempre entendeu muito pouco sobre paz, amor e liberdade. No entanto, o planeta nunca mais foi o mesmo depois de 68. Por certo, Maffesoli não tem todas as respostas. Mas poderá desvendar alguns dos mistérios da década mais importante de nosso tempo.



Foto: moutinho.planetaclix.pt/Copy_of_Andy_Warhol_r...

Indicação de leitura: MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum: Compêndio da sociologia compreensiva. São Paulo: Brasiliense, 1985.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Eles nunca serão jornalistas

A discussão sobre a obrigatoriedade do diploma para a prática do bom jornalismo é patética. Por muitas razões. Primeiro, porque começa onde quase tudo começa neste mundo estranho em que vivemos: no dinheiro. Empresas de comunicação querem se livrar de uma categoria organizada e cujas regras estão regulamentadas. Isso vai facilitar muito a tarefa de jornais, revistas e emissoras de TV, especialmente estes veículos tradicionais, na hora de definir a remuneração da turma da redação. Não tenho nenhuma dúvida de que irão oferecer salários piores do que os atuais. Se com diploma a grana é curta, sem ele...

Mas a questão do dinheiro, ainda que importante, não chega a ser a principal. Pelo menos para mim. É inevitável que um jornalista não formado, em sua grande maioria, irá oferecer um trabalho precário ao leitor, ao telespectador. Por uma razão muito simples: quem não tem diploma, quem não passou pela formação intelectual que todos os profissionais recebem quando cursam – e concluem – um curso universitário, não tem condições de compreender o mundo a partir da ótica do jornalista.

Os defensores da desregulamentação da profissão, os defensores do fim do diploma são, em primeiro lugar, defensores da preguiça e da malandragem. Não tiveram a fibra nem a garra do estudante de Jornalismo para chegar lá. Eles querem o atalho, querem o caminho mais curto, querem a vida mansa dos que furam a fila para levar vantagem sobre os demais. Querem chegar primeiro, mesmo tendo partido muito depois.

Não pensem que os que são contra o diploma querem fazer matérias investigativas, querem denunciar as agruras do mundo ou expor sua vida de facilidades sob qualquer risco. Não pensem que eles sonham em ser pesquisadores da área da Comunicação ou queiram participar de discussões, debates, congressos que contribuam para o crescimento da pesquisa em Comunicação. Que nada. Eles querem apenas escrever ou emitir suas nobres opiniões na grande imprensa. Desde que tudo seja feito em uma sala equipada com poltronas de couro e ar-condicionado com controle remoto. Pra não cansar.

Concordo com o jornalista formado David Coimbra, de Zero Hora, parceiro de muito trabalho e boas festas, quando diz que não quer ler matérias no jornal escrita por leitores. Eu também não quero! Não quero ouvir ouvintes na rádio dizendo o que está acontecendo na BR-116. Eu não quero assistir a um telejornal que coloca o telespectador para fazer notícia. Eu quero ser informado por quem é do ramo, por jornalistas.

Eu adoraria ver um desses falsos jornalistas cobrindo – in loco, e não do quarto do hotel – o conflito entre a Rússia e a Geórgia, por exemplo. Adoraria ver um deles em meio a uma batalha campal entre a Brigada Militar e integrantes do MST, como tantas vezes os jornalistas formados já fizeram e, por isso, se arriscaram para levar a melhor informação à sociedade. Adoraria ver os defensores da desregulamentação da profissão de jornalista subir o Complexo do Alemão, no Rio, para entrevistar traficantes ou se enfiar selva adentro para uma conversa amistosa com integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

Esses meus desejos, no entanto, não passam de devaneios. Jamais verei um furador de fila fazendo o velho e bom jornalismo, o jornalismo de verdade. Sim, porque jornalismo de verdade só pode ser feito por jornalista de verdade. O resto é história mal contada por quem não aprendeu a ser – e nunca será – um jornalista.

* Foto de Marcelo Collar, estudante da Unisinos, que se prepara para ser, de fato, um jornalista.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Che Guevara: imagem em movimento

Parece não haver dúvida de que o mito de Che Guevara tem se mantido presente 40 anos depois de sua morte em grande medida pela existência de uma imagem. A foto foi registrada no dia 5 de março de 1960 por Alberto Korda, que era o repórter fotográfico oficial da Revolução Cubana, em um ato em homenagem às vítimas de uma sabotagem ao barco francês La Cumbre, dinamitado no porto de Havana. A foto de Korda é apontada como a imagem mais famosa do mundo, segundo Marylan Institute, de Washington. O destino do retrato de Che encontra repouso nas palavras de Roland Barthes em suas teorias sobre fotografia. Para o pensador, “o que a fotografia reproduz ao infinito só ocorre uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”[1]. Para Barthes, o fotografado não é apenas um alvo do fotógrafo.

Aquela ou aquele que é fotografado é o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da fotografia, porque esta palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto[2].

O retrato “é um campo cerrado de forças”, acredita Barthes. Segundo o pensador, é no que chama de foto-retrato que “quatro imaginários aí se cruzam, aí se afrontam, aí se deformam”[3].

Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se seve para exibir sua arte. Em outras palavras, ato curioso: não paro de me imitar, e é por isso que, cada vez que me faço (que me deixo) fotografar, sou infalivelmente tocado por uma sensação de inautenticidade, às vezes de impostura (como certos pesadelos podem proporcionar). Imaginariamente, a fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa este momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes sou um sujeito que se sente tornar-se um objeto: vivo então uma microexperiência da morte (de parêntese): torno-me verdadeiramente espectro[4].

Jean Baudrillard vai além e afirma que a fotografia é o nosso exorcismo. “A sociedade primitiva tinhas suas máscaras, a sociedade burguesa, seus espelhos, nós temos nossas imagens”[5]. Para ele, a imagem fotográfica é dramática e, por ser dramática, é exaltada até mesmo pelo cinema. “O próprio cinema cultiva o mito da câmera lenta e do congelamento como o ponto mais alto da dramaticidade”[6].

E é este grau dramático da imagem fotográfica que provoca reações, sensações e expressões no receptor, que constrói sentidos, ou seja, o imaginário. Silva afirma que o imaginário é uma língua[7], que nós nos comunicamos por meio de nossos imaginários. Nas palavras do autor, o imaginário é uma narrativa mítica da era da imagem[8]. A imagem de Che é a sua própria língua, que mesmo silenciosa, se comunica e contagia gerações.

Se a imagem fotográfica tem a capacidade de se comunicar e contagiar as sociedades, o cinema potencializa este fenômeno, especialmente porque o cinema é o ancoradouro do mito da História. Em Simulacros e Simulação, Baudrillard tece uma relação entre mito, cinema e imaginário. Para ele, a História é o nosso mito, nosso referencial que já não existe mais. Com o fim da História, segundo Baudrillard, foi o cinema que a abrigou e passou a produzir o conteúdo imaginário do mito. No caso de Che Guevara, um dos personagens mais instigantes do Século XX, o cinema tem, de tempos em tempos, se ocupado do mito guevarista e daquele período histórico. Este artigo busca estabelecer um diálogo entre o pensamento de Baudrillard sobre cinema e Diários de Motocicleta, filme de Walter Salles.
* Foto de Juan Domingues

[1] BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 13.
[2] Ibidem, 1984, p. 20.
[3] Ibidem, 1984, p. 27.
[4] Ibidem, 1984, p. 28.
[5] BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 30.
[6] Ibidem, 1997, p. 33.
[7] SILVA, Juremir M. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 7.
[8] Ibidem, 2003, p. 7.

sexta-feira, 7 de março de 2008

O sonho de Chávez

Hugo Chávez é um sonhador. Mas não um sonhador comum. O presidente da Venezuela é um sonhador hipócrita, que se mantém no poder na base do pão e circo, uma antiga tática de oferecer comida e encenações e malabarismos políticos fictícios em troca de apoio. O maior dos sonhos de Chávez, que não passa de um falastrão egocêntrico, é ser Fidel Castro. Talvez mais que isso. É possível que o militar venezuelano queira ser Che Guevara. Ou Simon Bolívar, o libertador da América do Sul. Pobre Chávez. Para isso, presidente, o sr. teria que nascer um milhão de vezes mais. E entrar numa fila de homens que tiveram de conviver com seus defeitos, que certamente cometeram erros históricos e fantásticas façanhas na briga por uma sociedade melhor – do ponto de vista de seus idealizadores –, mas que sempre tiveram de sobra, presidente, o que lhe falta em excesso: conteúdo.

É quase um consenso entre a elite que Che Guevara foi um homem sanguinário, que não teve dó nem piedade de executar seus inimigos e desafetos na hora H. Era um louco, ouço. No julgamento a Fidel, acrescentam o rótulo de ditador, de homem que não concede ao povo cubano a liberdade de viajar para onde quiser, como se temesse que a ilha inteira se esvaziasse em poucas horas, com a população toda partindo para Miami. São opiniões e, mesmo que na maioria dos casos não sejam acompanhadas de qualquer conteúdo ou informação séria, devem ser respeitadas. Nem Che Guevara era um sanguinário nem Fidel Castro foi, simplesmente, um ditador. Podemos aprofundar o assunto, mas isso é para outra hora.

Meu foco, agora, é o homem da Venezuela. Parece claro que o sonho de Chávez é se transformar no grande mito latino-americano. Também me parece óbvio, no entanto, é que jamais o será. Não tem estatura intelectual para isso. Chávez não alcançará, sequer, o título de ídolo de uma geração sul-americana. Não, presidente, o sr. não chegará lá. Por uma razão muito simples: o sr. jamais será ídolo, símbolo, referência, ícone ou mito de geração alguma porque não se chega a este nível buscando permanentemente atingir tal objetivo. Mitos se constroem ao longo dos anos de uma forma natural, quase sem querer. Quem chega ao status de mito morre sem desconfiar que será alçado à ordem da mitologia depois de bater as botas. Sabemos que os mitos se estabelecem depois da morte. É a morte que dá vida ao mito. E Hugo Chávez, pobre Hugo Chávez, nem isso ele sabe.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Jamaica: mil anos de cultura

A convite da Revista Mundo Jovem, da PUCRS (http://www.mundojovem@pucrs.br/) que aborda, entre outras questões, comportamento, Educação, História e Geografia, escrevi um artigo sobre a Jamaica. Como o texto já foi publicado na edição de fevereiro, reproduzo neste blog o artigo sobre o país de Robert Nesta Marley.

Desde o final da década de 70, ouvir a palavra Jamaica é quase um sinônimo de Bob Marley, de reagge e de rastafari. No entanto, música e religião são apenas alguns dos ingredientes que compõem a rica - mas também sofrida - história da pequena ilha do Mar do Caribe, povoada lá pelo ano 1000. Como praticamente todas as regiões da América Latina, a Jamaica, cujo nome original é Xamayca, que para os nativos significa “terra de madeira e água”, foi alvo de disputas imperialistas, especialmente entre a Espanha (Cristóvão Colombo teria sido o descobridor da ilha em 1494) e a Inglaterra, que a teria conquistado o lugar em 1670. Mas o que os colonizadores queriam, afinal, em uma ilha de dimensões tão pequenas – a Jamaica tem apenas 270 quilômetros de extensão e cerca de 80 quilômetros de largura? Sabemos que o que movia as nações imperialistas – e que até hoje as move – era a exploração das riquezas das terras descobertas. Com a Jamaica não foi diferente. Para se ter uma idéia, durante os dois séculos em que a ilha esteve sob o controle inglês, a Jamaica se tornou o principal exportador de açúcar do planeta. Tudo, é óbvio, a partir do trabalho escravo do povo local.

O processo de independência da Jamaica se deu de forma lenta, mas sempre baseada em sucessivas revoltas dos ilhéus. Segundo os livros de História e Geografia que contam a trajetória do lugar, no começo do século XIX, a população negra chegou a ser 20 vezes superior à de brancos. Ciente de sua força numérica em relação aos imperialistas, os nativos passaram a protagonizar conflitos cada vez mais freqüentes até a abolição da escravatura em 1838. Foi o pontapé inicial para a emancipação, embora apenas pouco mais de um século depois, em 1958, a ilha se tornou província de uma nação independente e, quatro anos mais tarde, finalmente obteve sua total soberania.

Os anos de liberdade não significaram, no entanto, estabilidade econômica. Ao contrário, com o fim da grande produção açucareira e a queda vertiginosa do turismo, na década de 70, a Jamaica livre, de praias lindas e povo sorridente vivia sob índices altíssimos de pobreza, analfabetismo e, claro, violência.

Mas nem as dificuldades socioeconômicas foram capazes de anular as pecuiliaridades da cultura local que, pode-se dizer, é um riquíssimo patchwork etnico e religioso. Compõem a população os negros, os brancos latinos e ingleses. O idioma oficial é o inglês, mas há dezenas de dialetos dessa língua. Na religião, mesclam-se hindus, anglicanos (a maioria) e as tradições nativas que vão do cristianismo aos ritos africanos, como o vodoo. A grande força cultural do país, no entanto, repousa na mistura da religião com a música: o rastafari e o reggae. A religião rastafari (minoria) está baseada na idéia de combater a espiritualidade imposta pela religião européia, ou seja, dos colonizadores.

Com este mosaico de etnias e uma grande diversidade religiosa local, a música passou a ter grande importância na reafirmação da identidade do povo jamaicano. Com o reggae de Robert Nesta Marley, mais conhecido como Bob Marley, se estabeleceu o canal de disseminação não apenas da tradição jamaicana, mas também serviu de voz firme para a crítica ao imperialismo e ao chamamento à união dos povos da África.

Bob Marley morreu nos anos 80 sem ver o seu sonho realizado. A África continua sendo um continente problemático e sua Jamaica vive do turismo e de seu legado musical, mas sem grandes conquistas nas esferas da saúde e da educação. Em suas letras, Marley destaca o sofrimento do povo escravo, a pobreza, a ganância das nações ricas, o amor, a solidariedade, prega a não violência e, claro, exalta a religião rastafari. A música cadenciada de Marley pode ser uma porta de entrada para conhecer um pouco mais sobre a história do país. Mesmo que o sonho de ver uma África unida e uma Jamaica em melhores condições de vida não tenha se realizado como pretendia, é razoável afirmar que ao menos o reggae de Marley conseguiu chamar a atenção do mundo para questões que ele julgava importantes. Mais que isso: o reagge tem contribuído para mostrar a cultura jamaicana ao resto do mundo.

* A foto de Negril, na Jamaica, foi tirada por Roger Bundt em 30 de janeiro de 2008 e gentilmente cedida para este blog.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O mundo tecnológico não tem todas as respostas


Entre tantos estudos, o filósofo alemão Martin Heidegger, um dos principais pensadores do século XX, se ocupou em decifrar o conhecimento humano a partir do que chamava de “mundo da vida”, ou seja, o conhecimento a partir da vivência, do vivido. Em um de seus grandes trabalhos publicados, Ser e Tempo, Heidegger trata da fenomenologia, uma teoria de Husserl, de quem Heidegger foi discípulo, e que, de forma resumida, dá origem ao Historicismo, uma corrente filosófica que serviu de contraponto ao positivismo, cuja única forma de se chegar à verdade seria por meio de comprovações científicas. O ponto de partida da fenomenologia é o mundo, que nos determina, é a reflexão e não o imediatismo nem a teoria e o método.

Trilhando este caminho, Heidegger busca compreender como se estrutura o mundo para nós, que aqui estamos. Para o filósofo alemão, “nós somos no mundo”. Esta afirmação encontra repouso no fato de que o mundo em que vivemos está sempre estruturado quando a ele chegamos. O mundo que nos recebe está pronto. Por isso, “somos temporalmente”, afirma o professor Francisco Rüdiger, autor de Martin Heidegger e a questão da técnica (Sulina, 2006), obra que serve de base para a construção deste comentário.

Em um fragmento do manuscrito de Der Anklang, que integra o preâmbulo do livro de Rüdiger[1], o autor lembra: "Diz-se que a técnica é neutra - o homem é que a converte em uma bênção ou uma maldição. Porém, o que é o homem? O que é a técnica?" Em resumo, o filósofo busca estabelecer a relação entre homem e técnica. Esta era a grande preocupação de Heidegger: o ser e seu destino no Ocidente. “Para ele, tudo se resume ao ser: Somente o homem, entre todos os entes, experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: é o ente que é”[2].

Uma idéia básica de Heidegger sobre o homem encontra-se logo no começo do livro de Rüdiger.

[...] em sua visão (de Heidegger), somos entes para os quais está interditado o próprio conhecimento e, por isso, somos algo que pouco tem a ver com o que se esgota na tecnologia maquinística. Nenhum de nós pode saber o que é o homem: é ele uma transição, um sentido uma tempestade que varre nosso planeta, um retorno ou um enfado para o deuses?

Ao pensar o destino do ser, Heidegger percebe que algo mais está ligado aos entes e passa, então, a se preocupar também com a técnica e, assim, a relacionar homem e técnica. Do século XVII, época em que se origina o pensamento tecnológico a partir do surgimento das máquinas, até o século XX, acredita-se que a técnica é o meio para criar um mundo mais humano. Heidegger, porém, não pensa sobre a técnica de forma tão rasa. Para ele, pensar a técnica é refletir sobre ela para compreender como a técnica constitui o mundo e o futuro do homem. Afirma Rüdiger:

Heidegger tende a ser visto por muitos interessados na matéria como um filósofo da técnica, mas isso só à primeira vista é verdadeiro: na realidade, o filósofo tentou ser um pensador do problema ou questão da técnica. [...] O problema da técnica é, para ele, o que ela coloca ao futuro do ser humano, para além da forma e do sentido como esse ser foi definido no Ocidente[3].

A técnica, para o pensador, “é uma forma de pensar através da qual o ser se revela ao homem, via a fabricação de imagens, utensílios e situações”[4]. De acordo com Rüdiger, “a essência da técnica não é técnica, não é o cálculo desses elementos, juízo que vale para sua origem tanto quanto para a época moderna e, agora, para a sua atual etapa de acabamento”[5]. Acrescenta o autor:

A técnica é uma forma de pensar que se articula com os gregos e tem sua essência originária no ser humano, mas por isso mesmo sua essência muda de acordo com o modo como esse ser nos interpela historicamente. Na origem, a forma de saber que é a técnica era uma extensão da phisis: a phisis era a essência da técnica. Ainda quando desse entendimento se desligou, não foi de imediato que a técnica passou a ser vista como cálculo entre meios e fins ou princípio de reconstrução da existência. Quem ou o que impõe ou decide esse cálculo e seus projetos futuristas, portanto, é que é a questão essencial da técnica, é que responde à pergunta sobre qual é a essência ou o sentido da técnica moderna. Originariamente, a técnica era uma projeção da phisis [...] portanto, muito mais um modo de ser do que de pensar, o que ainda é, a partir do momento em que passa a depender do que o filósofo chama de o matemático. Quando o matemático se impõe, à natureza ou alguma outra figura, a técnica, por essa via, assume o sentido de cálculo[6].

Por matemático entende-se um sistema, uma relação nossa com o mundo. Nietzsche falava da “vontade de matematizar”, ou seja, vontade de poder. Trata-se de um princípio de identidade do mundo, é um princípio metafísico. É importante salientar que a técnica não é metafísica. Mas o modo como ela é empregada é metafísico. “Há sempre o elemento metafísico junto com a técnica”, lembra Rüdiger.

A preocupação de Heidegger com o futuro do homem encontra eco na própria evolução do pensamento tecnológico iniciado no século XVII. A expansão do capitalismo está ligada a este tipo de pensamento. Nas palavras de Rüdiger, “o capitalismo tem como fantasia o poder econômico que, por sua vez, tem como fantasia o valor”.

O pensamento tecnológico, no entanto, vai além. O que faz a diferença é a máquina, ou seja, o mundo sem o humano. Este mundo maquinístico é o próprio mundo pós-humano. Trata-se de um mundo novo, sem o homem. É o mundo do super-homem, como apontaria Nietzsche. Em outras palavras, é o mundo sem gente.

[...] o primeiro ponto a considerar é o esquecimento do ser em meio a um mundo que se torna cada vez mais tecnológico. A filosofia grega despertou-nos para a questão do ser há cerca de vinte e seis séculos. Encontramos-nos agora, porém, na época da superação ou do acabamento da metafísica: uma era que coincide embora não seja a mesma, com a época da ascensão do pensamento tecnológico, a era do imperialismo técnico planetário[7].

Na perspectiva de Heidegger, esse esquecimento do ser e, por conseqüência, o surgimento de um mundo diferente, é caracterizado pelo princípio denominado pelo pensador de armação. A armação é o princípio que cria o nosso mundo. É o nome dado por Heidegger para definir um mundo que não lida mais com o humano e a natureza como elementos principais, mas, sim, a máquina e o artifício.

A armação é a época do princípio tecnológico, que é ser máquina, o pós-humano. Em resumo, armação é o nome que Heidegger da ao sentido da técnica moderna.

A essência da armação é o ser mesmo do ente: não em geral e não desde sempre, mas apenas agora que o esquecimento do ser chegou a seu acabamento. O acontecimento que é esse acabamento do esquecimento do ser determina de maneira suprema a época acima, na medida em que agora o ser existe essencialmente sob a forma da armação[8].

É neste ponto que Heidegger alerta para alguns riscos a que o homem está exposto. Com o avanço ininterrupto da era da máquina, o filósofo passou a perceber a possibilidade “de ocorrer uma catástrofe radical contra não apenas esse ser, mas o próprio ente humano, visto se abrir com ela o projeto de fabricação artificial de todo o ser humano”, afirma Rüdiger.

O temor de Heidegger encontra repouso no fato de que se a era da armação alcança o mundo como um todo, alcança também a linguagem. E a linguagem, sabemos, é a estrutura principal da construção do mundo. Sem linguagem, sem palavra, não existe mundo. Pelo menos não o mundo tal qual conhecemos e vivemos. Portanto, se o mundo da armação já percorre o trajeto da metafísica, ou seja, da linguagem, é porque o mundo técnico começa a criar a linguagem artificial: digital. Seguindo as pistas deixadas por Heidegger, que afirma ser o mundo da armação “o perigo dos perigos”, o filósofo acredita que a linguagem artificial irá superar a metafísica e, conseqüentemente, o humano.

Ainda que devam existir sempre novas tecnologias e novas artificialidades, igualmente haverá de ter, por trás dessas novas criações, o humano, alguém com capacidade criadora. E o mundo haverá de ser sempre o mesmo, com alguns a criar – e a obter poder e força – para a maioria a reproduzir o que é criado. Mas o temor de Heidegger parece ter sentido e pode ir além.

O planeta tem sido modificado de tempos em tempos por catástrofes naturais. Isso pode ocorrer daqui a poucos milhões de anos e levar à extinção pura e simples do planeta, a menos que sejam criadas novas tecnologias capazes de evitar que a Terra seja atingida por fenômenos deste tipo. De outra parte, a própria tecnologia pode destruir o ente, como bombas nucleares, por exemplo. Artefatos deste tipo causariam uma destruição física do ente.

No entanto, talvez o grande perigo a que Heidegger se refere é o da força do mundo da armação, que, além de atingir a linguagem e substituí-la por uma linguagem artificial, poderá conduzir o humano a uma catástrofe existencial ou metafísica. Isso ocorrendo, poderia levar à modificação da identidade humana como a reconhecemos hoje em outra, pós-humana. Na conclusão do curso sobre a questão da técnica em Heidegger, Francisco Rüdiger afirma que “a concepção puramente técnica do mundo é uma fantasia utópica, porque convertido em máquina – por hipótese – o mundo não seria mais humano, teríamos dado o salto para o pós-humano”[9]. No entanto, o autor deixa no ar um alerta de que mundo tecnológico e a ciência não podem nos dar todas as respostas. Há áreas de sombras sob as quais não temos qualquer controle e continuaremos não tendo “enquanto formos humanos”.

[1] RÜDIGER, Francisco. Heidegger e a questão da técnica: Prospectos acerca do futuro do Homem. Porto Alegre: Sulina, 2006.
[2] Ibidem, 2006, p. 17.
[3] Ibidem, 2006, p. 25.
[4] Ibidem, 2006, p. 97.
[5] Ibidem, 2006, p. 98.
[6] Ibidem, 2006, p. 98.
[7] Ibidem, 2006, p. 35.
[8] Ibidem, 2006, p. 50.
[9] Ibidem, 2006, p. 236.