quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Jamaica: mil anos de cultura

A convite da Revista Mundo Jovem, da PUCRS (http://www.mundojovem@pucrs.br/) que aborda, entre outras questões, comportamento, Educação, História e Geografia, escrevi um artigo sobre a Jamaica. Como o texto já foi publicado na edição de fevereiro, reproduzo neste blog o artigo sobre o país de Robert Nesta Marley.

Desde o final da década de 70, ouvir a palavra Jamaica é quase um sinônimo de Bob Marley, de reagge e de rastafari. No entanto, música e religião são apenas alguns dos ingredientes que compõem a rica - mas também sofrida - história da pequena ilha do Mar do Caribe, povoada lá pelo ano 1000. Como praticamente todas as regiões da América Latina, a Jamaica, cujo nome original é Xamayca, que para os nativos significa “terra de madeira e água”, foi alvo de disputas imperialistas, especialmente entre a Espanha (Cristóvão Colombo teria sido o descobridor da ilha em 1494) e a Inglaterra, que a teria conquistado o lugar em 1670. Mas o que os colonizadores queriam, afinal, em uma ilha de dimensões tão pequenas – a Jamaica tem apenas 270 quilômetros de extensão e cerca de 80 quilômetros de largura? Sabemos que o que movia as nações imperialistas – e que até hoje as move – era a exploração das riquezas das terras descobertas. Com a Jamaica não foi diferente. Para se ter uma idéia, durante os dois séculos em que a ilha esteve sob o controle inglês, a Jamaica se tornou o principal exportador de açúcar do planeta. Tudo, é óbvio, a partir do trabalho escravo do povo local.

O processo de independência da Jamaica se deu de forma lenta, mas sempre baseada em sucessivas revoltas dos ilhéus. Segundo os livros de História e Geografia que contam a trajetória do lugar, no começo do século XIX, a população negra chegou a ser 20 vezes superior à de brancos. Ciente de sua força numérica em relação aos imperialistas, os nativos passaram a protagonizar conflitos cada vez mais freqüentes até a abolição da escravatura em 1838. Foi o pontapé inicial para a emancipação, embora apenas pouco mais de um século depois, em 1958, a ilha se tornou província de uma nação independente e, quatro anos mais tarde, finalmente obteve sua total soberania.

Os anos de liberdade não significaram, no entanto, estabilidade econômica. Ao contrário, com o fim da grande produção açucareira e a queda vertiginosa do turismo, na década de 70, a Jamaica livre, de praias lindas e povo sorridente vivia sob índices altíssimos de pobreza, analfabetismo e, claro, violência.

Mas nem as dificuldades socioeconômicas foram capazes de anular as pecuiliaridades da cultura local que, pode-se dizer, é um riquíssimo patchwork etnico e religioso. Compõem a população os negros, os brancos latinos e ingleses. O idioma oficial é o inglês, mas há dezenas de dialetos dessa língua. Na religião, mesclam-se hindus, anglicanos (a maioria) e as tradições nativas que vão do cristianismo aos ritos africanos, como o vodoo. A grande força cultural do país, no entanto, repousa na mistura da religião com a música: o rastafari e o reggae. A religião rastafari (minoria) está baseada na idéia de combater a espiritualidade imposta pela religião européia, ou seja, dos colonizadores.

Com este mosaico de etnias e uma grande diversidade religiosa local, a música passou a ter grande importância na reafirmação da identidade do povo jamaicano. Com o reggae de Robert Nesta Marley, mais conhecido como Bob Marley, se estabeleceu o canal de disseminação não apenas da tradição jamaicana, mas também serviu de voz firme para a crítica ao imperialismo e ao chamamento à união dos povos da África.

Bob Marley morreu nos anos 80 sem ver o seu sonho realizado. A África continua sendo um continente problemático e sua Jamaica vive do turismo e de seu legado musical, mas sem grandes conquistas nas esferas da saúde e da educação. Em suas letras, Marley destaca o sofrimento do povo escravo, a pobreza, a ganância das nações ricas, o amor, a solidariedade, prega a não violência e, claro, exalta a religião rastafari. A música cadenciada de Marley pode ser uma porta de entrada para conhecer um pouco mais sobre a história do país. Mesmo que o sonho de ver uma África unida e uma Jamaica em melhores condições de vida não tenha se realizado como pretendia, é razoável afirmar que ao menos o reggae de Marley conseguiu chamar a atenção do mundo para questões que ele julgava importantes. Mais que isso: o reagge tem contribuído para mostrar a cultura jamaicana ao resto do mundo.

* A foto de Negril, na Jamaica, foi tirada por Roger Bundt em 30 de janeiro de 2008 e gentilmente cedida para este blog.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O mundo tecnológico não tem todas as respostas


Entre tantos estudos, o filósofo alemão Martin Heidegger, um dos principais pensadores do século XX, se ocupou em decifrar o conhecimento humano a partir do que chamava de “mundo da vida”, ou seja, o conhecimento a partir da vivência, do vivido. Em um de seus grandes trabalhos publicados, Ser e Tempo, Heidegger trata da fenomenologia, uma teoria de Husserl, de quem Heidegger foi discípulo, e que, de forma resumida, dá origem ao Historicismo, uma corrente filosófica que serviu de contraponto ao positivismo, cuja única forma de se chegar à verdade seria por meio de comprovações científicas. O ponto de partida da fenomenologia é o mundo, que nos determina, é a reflexão e não o imediatismo nem a teoria e o método.

Trilhando este caminho, Heidegger busca compreender como se estrutura o mundo para nós, que aqui estamos. Para o filósofo alemão, “nós somos no mundo”. Esta afirmação encontra repouso no fato de que o mundo em que vivemos está sempre estruturado quando a ele chegamos. O mundo que nos recebe está pronto. Por isso, “somos temporalmente”, afirma o professor Francisco Rüdiger, autor de Martin Heidegger e a questão da técnica (Sulina, 2006), obra que serve de base para a construção deste comentário.

Em um fragmento do manuscrito de Der Anklang, que integra o preâmbulo do livro de Rüdiger[1], o autor lembra: "Diz-se que a técnica é neutra - o homem é que a converte em uma bênção ou uma maldição. Porém, o que é o homem? O que é a técnica?" Em resumo, o filósofo busca estabelecer a relação entre homem e técnica. Esta era a grande preocupação de Heidegger: o ser e seu destino no Ocidente. “Para ele, tudo se resume ao ser: Somente o homem, entre todos os entes, experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: é o ente que é”[2].

Uma idéia básica de Heidegger sobre o homem encontra-se logo no começo do livro de Rüdiger.

[...] em sua visão (de Heidegger), somos entes para os quais está interditado o próprio conhecimento e, por isso, somos algo que pouco tem a ver com o que se esgota na tecnologia maquinística. Nenhum de nós pode saber o que é o homem: é ele uma transição, um sentido uma tempestade que varre nosso planeta, um retorno ou um enfado para o deuses?

Ao pensar o destino do ser, Heidegger percebe que algo mais está ligado aos entes e passa, então, a se preocupar também com a técnica e, assim, a relacionar homem e técnica. Do século XVII, época em que se origina o pensamento tecnológico a partir do surgimento das máquinas, até o século XX, acredita-se que a técnica é o meio para criar um mundo mais humano. Heidegger, porém, não pensa sobre a técnica de forma tão rasa. Para ele, pensar a técnica é refletir sobre ela para compreender como a técnica constitui o mundo e o futuro do homem. Afirma Rüdiger:

Heidegger tende a ser visto por muitos interessados na matéria como um filósofo da técnica, mas isso só à primeira vista é verdadeiro: na realidade, o filósofo tentou ser um pensador do problema ou questão da técnica. [...] O problema da técnica é, para ele, o que ela coloca ao futuro do ser humano, para além da forma e do sentido como esse ser foi definido no Ocidente[3].

A técnica, para o pensador, “é uma forma de pensar através da qual o ser se revela ao homem, via a fabricação de imagens, utensílios e situações”[4]. De acordo com Rüdiger, “a essência da técnica não é técnica, não é o cálculo desses elementos, juízo que vale para sua origem tanto quanto para a época moderna e, agora, para a sua atual etapa de acabamento”[5]. Acrescenta o autor:

A técnica é uma forma de pensar que se articula com os gregos e tem sua essência originária no ser humano, mas por isso mesmo sua essência muda de acordo com o modo como esse ser nos interpela historicamente. Na origem, a forma de saber que é a técnica era uma extensão da phisis: a phisis era a essência da técnica. Ainda quando desse entendimento se desligou, não foi de imediato que a técnica passou a ser vista como cálculo entre meios e fins ou princípio de reconstrução da existência. Quem ou o que impõe ou decide esse cálculo e seus projetos futuristas, portanto, é que é a questão essencial da técnica, é que responde à pergunta sobre qual é a essência ou o sentido da técnica moderna. Originariamente, a técnica era uma projeção da phisis [...] portanto, muito mais um modo de ser do que de pensar, o que ainda é, a partir do momento em que passa a depender do que o filósofo chama de o matemático. Quando o matemático se impõe, à natureza ou alguma outra figura, a técnica, por essa via, assume o sentido de cálculo[6].

Por matemático entende-se um sistema, uma relação nossa com o mundo. Nietzsche falava da “vontade de matematizar”, ou seja, vontade de poder. Trata-se de um princípio de identidade do mundo, é um princípio metafísico. É importante salientar que a técnica não é metafísica. Mas o modo como ela é empregada é metafísico. “Há sempre o elemento metafísico junto com a técnica”, lembra Rüdiger.

A preocupação de Heidegger com o futuro do homem encontra eco na própria evolução do pensamento tecnológico iniciado no século XVII. A expansão do capitalismo está ligada a este tipo de pensamento. Nas palavras de Rüdiger, “o capitalismo tem como fantasia o poder econômico que, por sua vez, tem como fantasia o valor”.

O pensamento tecnológico, no entanto, vai além. O que faz a diferença é a máquina, ou seja, o mundo sem o humano. Este mundo maquinístico é o próprio mundo pós-humano. Trata-se de um mundo novo, sem o homem. É o mundo do super-homem, como apontaria Nietzsche. Em outras palavras, é o mundo sem gente.

[...] o primeiro ponto a considerar é o esquecimento do ser em meio a um mundo que se torna cada vez mais tecnológico. A filosofia grega despertou-nos para a questão do ser há cerca de vinte e seis séculos. Encontramos-nos agora, porém, na época da superação ou do acabamento da metafísica: uma era que coincide embora não seja a mesma, com a época da ascensão do pensamento tecnológico, a era do imperialismo técnico planetário[7].

Na perspectiva de Heidegger, esse esquecimento do ser e, por conseqüência, o surgimento de um mundo diferente, é caracterizado pelo princípio denominado pelo pensador de armação. A armação é o princípio que cria o nosso mundo. É o nome dado por Heidegger para definir um mundo que não lida mais com o humano e a natureza como elementos principais, mas, sim, a máquina e o artifício.

A armação é a época do princípio tecnológico, que é ser máquina, o pós-humano. Em resumo, armação é o nome que Heidegger da ao sentido da técnica moderna.

A essência da armação é o ser mesmo do ente: não em geral e não desde sempre, mas apenas agora que o esquecimento do ser chegou a seu acabamento. O acontecimento que é esse acabamento do esquecimento do ser determina de maneira suprema a época acima, na medida em que agora o ser existe essencialmente sob a forma da armação[8].

É neste ponto que Heidegger alerta para alguns riscos a que o homem está exposto. Com o avanço ininterrupto da era da máquina, o filósofo passou a perceber a possibilidade “de ocorrer uma catástrofe radical contra não apenas esse ser, mas o próprio ente humano, visto se abrir com ela o projeto de fabricação artificial de todo o ser humano”, afirma Rüdiger.

O temor de Heidegger encontra repouso no fato de que se a era da armação alcança o mundo como um todo, alcança também a linguagem. E a linguagem, sabemos, é a estrutura principal da construção do mundo. Sem linguagem, sem palavra, não existe mundo. Pelo menos não o mundo tal qual conhecemos e vivemos. Portanto, se o mundo da armação já percorre o trajeto da metafísica, ou seja, da linguagem, é porque o mundo técnico começa a criar a linguagem artificial: digital. Seguindo as pistas deixadas por Heidegger, que afirma ser o mundo da armação “o perigo dos perigos”, o filósofo acredita que a linguagem artificial irá superar a metafísica e, conseqüentemente, o humano.

Ainda que devam existir sempre novas tecnologias e novas artificialidades, igualmente haverá de ter, por trás dessas novas criações, o humano, alguém com capacidade criadora. E o mundo haverá de ser sempre o mesmo, com alguns a criar – e a obter poder e força – para a maioria a reproduzir o que é criado. Mas o temor de Heidegger parece ter sentido e pode ir além.

O planeta tem sido modificado de tempos em tempos por catástrofes naturais. Isso pode ocorrer daqui a poucos milhões de anos e levar à extinção pura e simples do planeta, a menos que sejam criadas novas tecnologias capazes de evitar que a Terra seja atingida por fenômenos deste tipo. De outra parte, a própria tecnologia pode destruir o ente, como bombas nucleares, por exemplo. Artefatos deste tipo causariam uma destruição física do ente.

No entanto, talvez o grande perigo a que Heidegger se refere é o da força do mundo da armação, que, além de atingir a linguagem e substituí-la por uma linguagem artificial, poderá conduzir o humano a uma catástrofe existencial ou metafísica. Isso ocorrendo, poderia levar à modificação da identidade humana como a reconhecemos hoje em outra, pós-humana. Na conclusão do curso sobre a questão da técnica em Heidegger, Francisco Rüdiger afirma que “a concepção puramente técnica do mundo é uma fantasia utópica, porque convertido em máquina – por hipótese – o mundo não seria mais humano, teríamos dado o salto para o pós-humano”[9]. No entanto, o autor deixa no ar um alerta de que mundo tecnológico e a ciência não podem nos dar todas as respostas. Há áreas de sombras sob as quais não temos qualquer controle e continuaremos não tendo “enquanto formos humanos”.

[1] RÜDIGER, Francisco. Heidegger e a questão da técnica: Prospectos acerca do futuro do Homem. Porto Alegre: Sulina, 2006.
[2] Ibidem, 2006, p. 17.
[3] Ibidem, 2006, p. 25.
[4] Ibidem, 2006, p. 97.
[5] Ibidem, 2006, p. 98.
[6] Ibidem, 2006, p. 98.
[7] Ibidem, 2006, p. 35.
[8] Ibidem, 2006, p. 50.
[9] Ibidem, 2006, p. 236.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O ofício de decifrar


Das idéias que permeiam o pensamento de Jesús Martín-Barbero em relação à comunicação, uma, em especial, me chama a atenção: a de que as novas tecnologias não apenas servem para provocar mudanças no cenário comunicacional ou modificar o comportamento das pessoas, pura e simplesmente, mas influenciam o consumo cultural. Ao contrário da razão hegemônica vigente, de que a tecnologia tem o poder de mediar as relações entre as pessoas e o mundo, o autor sentencia que “o que a tecnologia medeia hoje mais intensa e aceleradamente é a transformação da sociedade em mercado, e deste em principal agenciador da mundialização”[1].

Para desbravar o caminho, é preciso virar a lente, observar a mídia e sua tecnologia que hoje impulsionam os processos de comunicação a partir de um ponto de vista mais amplo, especialmente a partir da intensificação do processo de globalização e os movimentos transnacionais que, segundo o autor, “ultrapassarão os alcances teóricos da teoria do imperialismo, obrigando-nos a pensar uma trama nova de territórios e de atores, de contradições e conflitos”[2].

Para muitos autores, a própria noção de globalização, entre eles George Yúdice, tem como fenômeno principal o consumo. “A ênfase maior no contexto global das práticas culturais nos anos 1980 e 1990 é o resultado dos efeitos da liberalização do comércio, do maior alcance global das comunicações e do consumismo”[3].


Nesta arquitetura, Ortiz trilha caminho semelhante ao de Yúdice e vai além. Para ele, essa espécie de eliminação de territórios demarcados, denominado por muitos como “desterritorialização” tem como fulcro o mercado consumidor, no qual são “forjadas referências culturais mundializadas”[4]. Comenta Ortiz:

os personagens, imagens, situações, veiculadas pela publicidade, histórias em quadrinhos, televisão, cinema constituem-se em substratos desta memória. Nela se inscrevem as lembranças de todos. As estrelas de cinema Greta Garbo, Marlyn Monroe ou Brigitte Bardot, cultuadas nas cinematecas, pôsters e anúncios, fazem parte de um imaginário coletivo mundial. Neste sentido, pode-se falar de uma memória cibernética, banco de dados das lembranças desterritorializadas dos homens. Marcas de cigarro, carros velozes, cantores de rock, produtos de supermercado, cenas do passado ou de sience-fiction são elementos heteróclitos, estocados para serem utilizados a qualquer momento. A memória internacional-popular contém traços da modernidade-mundo, ela é o seu receptáculo. Esses objetos-souvenirs são carregados de significados e, ao se atualizarem, povoam e tornam o mundo inteligível. Daí, ao contemplá-los, esta sensação de familiaridade que nos invade[5].

Neste cenário, Barbero procura estabelecer, do ponto de vista da comunicação, o que ele chama de “novo mapa”. Sob este prisma, o autor defende que uma outra geografia da comunicação possa dar conta da relevância das mídias nas relações de produção, consumo e poder. Para isso, Barbero define como eixos deste mapa as matrizes culturais, os formatos industriais e as lógicas de produção e de recepção. Para ele, as matrizes culturais, que são uma espécie de reservatório de experiências tradicionais, percorrem um trajeto ao longo do tempo até serem ratificadas, reforçadas pelos formatos industriais.

Um exemplo bem flagrante desta estrutura – e muito próxima de nós, gaúchos – é a própria exploração do gauchismo por parte da mídia do Rio Grande do Sul, com ênfase para o Grupo RBS, em geral, e o jornal Zero Hora, em particular.
Na outra ponta do mapa, Barbero propõe o eixo sincrônico, que liga as lógicas de produção da mídia com as lógicas de recepção. Esta relação estabelece o que o autor chama de “competências de recepção ou de consumo”.

É interessante notar que nesta espécie de losango de forças, outros fenômenos atuam simultaneamente, como a tecnicidade, a ritualidade, a socialidade e a institucionalidade. Se bem compreendo o que Barbero quer dizer, é a partir deste ciclo de fenômenos que se retroalimentam diariamente que a mídia e sua lógica de produção enredam a sociedade na teia de um consumo cultural mais ou menos padronizado, ainda que nem sempre os receptores apreendem totalmente o que os formatos industriais estabelecem.

No entanto, o mapa de Barbero nos indica que o poder da mídia está tão presente no espectro social que se tornou um ritual (pessoas só saem de casa depois da telenovela ou precisam ler o jornal nas primeiras horas da manhã, por exemplo), uma ferramenta de socialidade (o que está na mídia passa a ser uma prática social) e uma força institucional (os discursos da mídia têm grande relevância e regulam os próprios discursos dos cidadãos).

Esta idéia de que a sociedade se transforma em mercadoria a partir do consumo cultural engendrado pelo entrecruzamento de lógicas de produção/lógicas de recepção/matrizes culturais/formatos industriais encontra repouso em algumas teorias de outro autor, Mike Featherstone. Segundo ele, “a sociedade de consumo [...] é um vasto complexo de signos e imagens fragmentárias”[6].


Neste consumo de signos, afirma Featherstone, a importância reside “na capacidade de remodelar incessantemente o aspecto simbólico ou cultural da mercadoria”[7]. Ou seja, esse “remodelar incessantemente” parece ser a retroalimentação dos fenômenos assinalados por Barbero e que resulta neste novo consumo cultural mediado pelo poder midiático. Afirma Barbero:

É a partir das novas maneiras de juntar-se e excluir-se, de deconhecer-se e se reconhecer que adquire consistência social e relevância cognitiva aquilo que passa em e pelas mídias e pelas nova tecnologias de comunicação. Pois foi aí que as mídias começaram a construir o público, a mediar na produção de imaginários que de algum modo integram a desgarrada experiência urbana dos cidadãos, seja substituindo a neutralidade da rua pela espetacularização televisiva dos rituais da política, seja desmaterializando a cultura e aliviando-a de sua espessura histórica mediante tecnologias que, como as redes telemáticas ou os videogames, propõem a hiper-realidade e a descontinuidade como hábitos perceptivos dominantes[8].

Nesta perspectiva de ritualidade, ou seja, de repetição dos formatos industriais midiáticos inserida no cotidiano social, Barbero não se engana quando diz que “é o que na comunicação há de permanente reconstrução do nexo simbólico: ao mesmo tempo repetição e inovação, âncora na memória e horizonte”[9]. Parece ser o eterno ofício de decifrar.


[1] Martín-Barbero, Jesús. Ofício de cartógrafo: Travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Loyola, 2004, p. 229.
[2] Ibidem, 2004, p. 217.
[3] YÚDICE, George. A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 124.
[4] ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 111
[5] Ibidem, 2000, p. 126.
[6] FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: Globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1997, p. 109.
[7] Ibidem, 1997, p. 109.
[8] BARBERO, op. cit. p. 220.
[9] Ibidem, 2004, p. 231.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Os labirintos da cultura

Para cada área do conhecimento, uma definição. Para cada reflexão científica, uma concepção. Não existe uma única noção acerca do termo cultura, que em latim, sua origem, significa cultivar o solo, cuidar. Por isso, até hoje, no ramo agrícola (agricultura) diz-se cultura do arroz, da soja, do milho. Na sociologia, na filosofia, na antropologia, nas artes, na literatura e na comunicação, cultura tem diferentes entendimentos e versões.

Não vou tratar aqui das tantas noções sobre o tema. No entanto, vale um passeio por algumas concepções de cultura em Raymond Williams, um dos primeiros a pensar os Estudos Culturais, quando o mundo se transformava com o impacto da Revolução Industrial e as Guerras Mundiais, e em Néstor García Canclini, autor que se ocupa, especialmente, dos processos culturais na América Latina em um planeta que novamente se modifica, especialmente a partir das novas tecnologias.

Época e fatos históricos parecem influir no significado do termo. Maria Elisa Cevasco lembra que a partir do século XVIII a palavra cultura passou a ser utilizada como substantivo abstrato para designar desenvolvimento humano. Com as mudanças sociais advindas da Revolução Industrial, no decorrer do século XIX, cultura deixa de ser um processo de aprimoramento das faculdades mentais e passa a ter o sentido de crítica àquela sociedade em plena transformação. Em meados do século XX, estudar uma sociedade em ebulição que busca uma nova organização depois da Segunda Guerra pelo viés da cultura não apenas ganha importância na Europa, como em pouco tempo se transforma em disciplina acadêmica na Inglaterra a partir, especialmente, de Raymond Williams e os Estudos Culturais.

Williams percebeu o crescimento dominante dos meios de comunicação de massa e uma espécie de deslizamento das disputas de poder do epicentro econômico e político para o âmbito cultural. “As grandes oposições entre as espécies humanas e a fonte dominante dos conflitos serão culturais”, previu Samuel Huntington no ensaio The Clash of Civilization, de 1993. Ao contrário de Huntington, Williams acreditava que cultura não poderia estar apartada da vida cotidiana, ou seja, das questões econômicas, sociais e políticas.

O pensamento de Williams, expresso em Cultura e Sociedade, sua principal obra, é um divisor de águas. Antes dele, cultura era vista como privilégio de poucos, de uma minoria. A partir dele, seria pulverizada entre a população, principalmente por meio da educação. A questão central de sua proposição é que todos tenham acesso ao conhecimento e aos meios de produção cultural. “A idéia de uma cultura em comum é apresentada como uma crítica e uma alternativa à cultura dividida e fragmentada que vivemos”. É a partir do materialismo cultural de Williams que ele estabelece a ligação entre este e a vida social. Esta teoria abre aos estudos culturais a possibilidade de descrever como acuidade o funcionamento da cultura na sociedade contemporânea e de buscar sempre as formas do emergente, do que virá.

Desde Raymond Williams, o mundo tem se transformado de maneira ainda mais acelerada do que à época da Revolução Industrial e o segundo Pós-Guerra, episódios que marcaram os séculos XIX e XX. Este lapso de tempo, no entanto, não ajudou a definir o termo cultura. Ao contrário. Segundo Néstor García Canclini, “há décadas, aqueles que estudam a cultura experimentam a vertigem das imprecisões”. Mas o autor não se exime de apresentar a mais óbvia definição da palavra em questão, apontando para “quando se faz com que se assemelhe a educação, ilustração, refinamento, informação ampla. Nesta linha, cultura é o acúmulo de conhecimento e aptidões intelectuais e estéticas”.

Canclini sabe que a definição sobre cultura citada acima não encerra o debate, apenas dá o pontapé inicial. Há um caminho sinuoso para elucidar a questão. No entanto, ele complica um pouco mais a situação ao incluir o consumo da sociedade neste guarda-chuva e busca cimentar seu pensamento lembrando Jean Baudrillard e Pierre Bourdieu e suas respectivas teorias acerca de cultura. O primeiro divide o problema em tipos de valor na sociedade. Além dos valores de uso e de troca, Baudrillard acrescenta os valores signo e símbolo. Parece claro que o valor de uso de um carro está na sua função primeira, ou seja, transportar pessoas.

O valor de troca se dá pelo mercado, quanto vale o carro dependendo do seu estado de conservação, por exemplo. Já o valor signo a que se refere Baudrilhard reside, de acordo com Canclini, no “conjunto de conotações, de implicações simbólicas que estão associadas a este objeto”. O valor símbolo se estabelece quando o carro teria sido, por exemplo, o presente dado por alguém. Canclini defende que esta classificação permite diferenciar o socioeconômico do cultural. “ O [valor] de uso e o [valor] de troca têm a ver principalmente, não unicamente, com a materialidade do objeto, com a base da vida material. Os dois últimos [valor signo e valor símbolo] referem-se à cultura, aos processos de significação”.

Ao citar Bourdieu, Canclini lembra que aquele autor estabeleceu a diferença entre cultura e sociedade na medida em que a segunda está envolvida com relações de força (valor de uso e de troca), entrelaçadas com relações de sentido, “que organizam a vida social, as relações de significação. O mundo das significações, do sentido constitui a cultura”.

Fazendo um paralelo entre os pensamentos de Williams e Canclini, podemos dizer que a cultura comum pretendida pelo primeiro não parece ter se consolidado plenamente, embora o desenvolvimento tecnológico e comunicacional, como a Internet, tenha contribuído muito para uma espécie de pulverização de conhecimentos mundo afora – mas não em todas as partes –, ou como prefere chamar Pierre Lévy, para o nascimento de uma memória coletiva, de uma inteligência coletiva. O que Canclini acredita, no entanto, ser cultura, não está tão longe do idealismo de Williams, ainda que não sejam teorias idênticas. Para o autor latino-americano, todas as práticas sociais contêm uma dimensão cultural, mas nestas práticas nem tudo é cultura. Definir cultura, já se vê, é um debate longo e, talvez, sem fim.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O naufrágio e o caos

Ando às voltas com o mito Che Guevara para a dissertação de mestrado. Leio, ao mesmo tempo, Néstor García Canclini, Michel Maffesoli, Gilbert Durant, Everardo Rocha, Juremir Machado da Silva, Edgar Morin, Mike Featherstone e Jean Baudrillard, para citar alguns. Não que todos esses autores se encontrem no final da estrada, embora sempre se possa captar uma ou outra noção teórica, alguma opinião convergente entre autores diferentes. Mas de tanto ler, escrever e ouvir a palavra mito nos últimos dias, até por conta dos 40 anos da morte de Che, lembrado em 9 de outubro passado, me veio à mente Jean-François Lyotard e o seu livro “O pós-moderno”, de 1986.

Foi ele, Lyotard, um dos primeiros a tratar deste termo tão controverso que é o pós-moderno. O livro de Lyotard é uma espécie de documento fundador do assunto. E o que nos diz o autor francês? Para ele, a pós-modernidade coloca em xeque as grandes narrativas ou, como ele prefere chamar, os metarrelatos, como o marxismo, o comunismo, o freudismo etc. Enfim, em última instância, são narrativas que, em algum momento, teriam sido verdades. Lyotard afirma que, na pós-modernidade, os metarrelatos caíram em descrédito. Vivemos a incredulidade nos metarrelatos, portanto.

O mito, diz o autor, é o metarrelato das sociedades primitivas. Mas as grandes narrativas também são os mitos das sociedades contemporâneas. São histórias que as pessoas contam para elas mesmas para que encontrem a verdade. Nós tentamos, ainda que em vão, buscar a verdade. Os mitos, as narrativas servem para ratificar a verdade, nas palavras de Juremir Machado da Silva.

Lyotard culpa o desenvolvimento da ciência e das tecnologias pelo descrédito dos metarrelatos, como se a âncora que nos mantém seguros fosse, aos poucos, se soltando até deixar nosso barco à deriva. Sim, porque, quando não há mais a grande narrativa, o mito e as histórias para ratificar a verdade, o que fica em seus lugares? Para Lyotard, esse espaço vazio é a pós-modernidade, uma espécie de crise de legitimação do saber.

Juremir fez a pergunta: Quando o saber é legítimo, verdadeiro e aceito hoje? Quando? O que é arte? O que é ciência? A definição de arte é dada pelos artistas e seus pares. São eles que definem o que é arte. Assim como a ciência e suas verdades. Há pouco tempo tínhamos, por exemplo, o planeta Plutão. De repente, da noite para o dia, os cientistas decidiram que Plutão seria rebaixado à categoria inferior, não seria mais um planeta. Durante anos, nos convencemos de que Plutão era um planeta, de verdade. Parece que isso não passou de um engano. Ou teria sido o resultado de uma disputa de poder entre os cientistas? Ou um acordo que teria expirado o prazo para manter Plutão um planeta? É que não vale esquecer: a ciência é formada por seres humanos, com todos os seus jogos, falhas e seus objetivos profissionais, de carreira, sua vaidades e disputas permanentes. Mesmo a despeito das permanentes mudanças sociais e culturais, talvez os mitos se mantenham presentes nas sociedades porque neles ainda encontramos uma âncora ou um fio terra, para usar expressão de Sandra Jatahy Pesavento, que nos ajuda a evitar o naufrágio e escapar do caos.
* Plutão, a partir de sua lua Caronte

terça-feira, 25 de setembro de 2007

40 anos de um mito


Em 9 de outubro de 1967, o exército boliviano colocou um ponto final na trajetória do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara, que com Fidel Castro obteve seu maior trunfo ao derrubar Fulgencio Batista do poder em Cuba, em 1959. Mas Che não queria mudar somente Cuba. Opositor ferrenho do sistema capitalista, em geral, e dos Estados Unidos, em particular, queria mudar os rumos do planeta. Sonhava com um mundo socialista. Che morreu sem atingir o seu objetivo.

Depois de ser executado nas montanhas da Bolívia, no entanto, Che se transformou em um mito universal, um símbolo da esquerda mundial e da luta contra o capitalismo. Imortalizado por uma imagem, a famosa foto de Alberto Korda, seu mito resiste às rápidas mudanças sociais, econômicas e culturais verificadas especialmente nas últimas duas décadas, mas não está intacto. Em 40 anos, a percepção imaginária sobre ele parece estar passando por diferentes releituras. Um fenômeno próprio dos mitos, segundo Everardo Rocha, para quem o mito está sempre sendo reinterpretado, independentemente de suas versões.

Neste mundo forjado pela nova ordem mundial sob a batuta do processo de globalização em praticamente todas as esferas da vida cotidiana, a imagem de Korda não é mais vista apenas em quadros pendurados nas paredes de sindicatos de trabalhadores ou de gabinetes de partidos políticos de esquerda, que se apropriaram – alguns ainda se apropriam – do que Che representou um dia no cenário político e ideológico.

Hoje, o rosto sério de Che Guevara está estampado nos mais diferentes suportes: camisetas, jaquetas, bottons, cintas, bonés, biquínis, xícaras. No Peru, uma empresa lançou um cigarro com a marca El Che, em comemoração aos 40 anos de sua morte. Objetos com a figura do mito estão à venda nas ruas centrais das grandes cidades da América do Sul, da Europa, da Ásia e até das grandes metrópoles norte-americanas.

Estão à venda em toda a parte. Na Internet, há centenas de portais – a maioria deles produzida nos Estados Unidos – que comercializam produtos[1] com o rosto de Che. Por ironia, o símbolo da revolução socialista parece ter se transformado em um ícone de consumo do sistema capitalista que ele tanto combateu. Minha dissertação de mestrado procura indícios de como teria ocorrido este fenômeno que tirou um mito universal de seu habitat natural – neste caso, a revolução socialista – para torná-lo objeto de consumo do mundo globalizado. Não me refiro ao consumo como mercadoria, explorado pela publicidade, mas ao consumo simbólico de Che e o que ele representa para as novas gerações.

[1] Disponível em: <http://www.starstore.com/>. Acesso em: 12 jun. 2007.
* Imagem de Andy Warhol.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A questão da técnica


Entre tantos estudos, o filósofo Heidegger, um dos principais pensadores do século XX, se ocupou em decifrar o conhecimento humano a partir do que chamava de “mundo da vida”, ou seja, o conhecimento a partir da vivência, do vivido. Em um de seus grandes trabalhos publicados, Ser e Tempo, Heidegger trata da fenomenologia, uma teoria de Husserl, de quem Heidegger era discípulo, e que, de forma resumida, dá origem ao Historicismo, uma corrente filosófica que serviu de contraponto ao positivismo, cuja única forma de se chegar à verdade seria por meio de comprovações científicas. O ponto de partida da fenomenologia é o mundo, que nos determina, é a reflexão e não o imediatismo nem a teoria e o método.

Trilhando este caminho, Heidegger busca compreender como se estrutura o mundo para nós, que aqui estamos. Para o filósofo alemão, “nós somos no mundo”. Esta afirmação encontra repouso no fato de que o mundo em que vivemos está sempre estruturado quando a ele chegamos. O mundo que nos recebe está pronto. Por isso, “somos temporalmente”, afirma o professor Francisco Rüdiger, autor de Martin Heidegger e a questão da técnica (Sulina, 2006).

Mais tarde, lá pelo começo da década de 30 do século passado, o pensamento fenomenológico de Heidegger sofre uma ruptura: ele passa a investigar a História do Ser e a relacionar homem e técnica. Em um fragmento do manuscrito de Der Anklang, que integra o preâmbulo do livro de Rüdiger, o autor lembra: "diz-se que a técnica é neutra - o homem é que a converte em uma bênção ou uma maldição. Porém, o que é o homem? O que é a técnica?", pergunta. Esses são alguns dos mistérios que estamos tentando desvendar – ou, ao menos, compreender – nas aulas de Rüdiger e sua Crítica do Pensamento Tecnológico.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Em busca do idioma universal



A inteligência coletiva defendida por Pierre Lévy ainda precisa, segundo o próprio, superar algumas barreiras para se consolidar totalmente. Ele acredita que o idioma é o principal obstáculo para que o mundo possa, efetivamente, se comunicar sem fronteiras. Para isso, durante os últimos 15 anos, Lévy se ocupou com a criação de uma série de combinações de signos (letras) que tentam expressar todos os sentidos, as regras, os desejos, as palavras, as frases e os ordenamentos. A coisa é complicada.

Na segunda aula que ministrou para os alunos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS, no último dia 15 de agosto, Lévy fez uma longa explanação, mostrou slides, apresentou exemplos de combinações. A idéia principal é que essas matrizes, com as combinações de signos, sejam transferidas para o computador, que teria a missão de decifrar e compreender todos esses códigos e, assim, grosso modo, um chinês poderia conversar tranqüilamente com um russo via Internet, por exemplo. Ou um brasileiro conseguiria ler uma página árabe na web. Tudo porque o mundo teria, a partir daí, um idioma universal.

O filósofo não tem previsão de quando sua idéia poderá ser aplicada na prática. As grandes empresas especializadas em Internet, de acordo com Lévy, não têm qualquer interesse neste tipo de pesquisa. “Elas querem as coisas prontas. Por que irão gastar em pesquisa se estamos fazendo uma”, perguntou?

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Áreas de sombra e de mistério

Inteligência coletiva. Esta é a denominação que Pierre Lévy dá ao estágio em que vivemos hoje. Lévy é professor da Universidade de Ottawa, no Canadá, e está ministrando aula de dois dias para alguns poucos privilegiados alunos do Programa de Pós-Graduação da PUCRS. Para Lévy, que também é uma das celebridades do Fronteiras do Pensamento, projeto cultural da Copesul, vivemos num tempo em que a gestão da humanidade está nas mãos dos intelectuais e suas interconexões. Em outras palavras, o mundo está sendo – e deverá ser cada vez mais – gerido pelo capital do conhecimento e da informação.

Mas como se forma o capital do conhecimento? Para nós, alunos de Lévy, a resposta parece mais um enigma nesta tarefa inglória de tentar compreender as relações humanas no mundo em que vivemos. Para ele, a resposta é simples: tudo pode ser encontrado nas variáveis do conhecimento, na unidade de informação. Com bom humor, Lévy explica que a unidade de informação é composta por três ingredientes essenciais: o signo (símbolo, artes, ciências, capital intelectual), o ser (fonte de afetividade, onde se dá a existência, é o querer, o valor, o capital ético) e a coisa (a referência, o poder, o capital econômico, as finanças). Isso tudo no campo do virtual.

No campo da atualização, temos a memória, as imagens, os meios, as redes, a Internet, as bibliotecas, a mídia, a bibliografia, enfim, o capital cultural. E também temos o capital social, com as pessoas, as regras de convivência e os laços sociais. A ação interconectada de todas essas variáveis resulta na inteligência coletiva a que se refere Pierre Lévy.

Sim, é complicado de entender. Eu, aliás, resolvi escrever no blog algumas impressões que tive sobre a primeira das duas aulas com Lévy para tentar encaixar os pensamentos. Ainda não os encaixei, admito. Mas eu chego lá. Perguntado por uma colega quais seriam, enfim, os benefícios que teria a humanidade a partir da inteligência coletiva, Lévy disse apenas que o conhecimento deve, sempre, servir para melhorar a vida das pessoas. Ao ser questionado onde tudo isso poderia parar, o professor respondeu: “Não tenho conclusões. Acredito que não devemos ignorar a existência do desconhecido. Devemos compreender que o desconhecido existe para que possamos descobri-lo”. Em outras palavras, é o que costuma dizer Juremir Machado da Silva: “é fundamental termos áreas de sombra, de mistério. Não precisamos explicar tudo”.
* A foto de Thiago Gutterman é da Praia do Silveira, em Garopaba.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

A contraditória necessidade de escrever


Como ainda sou um iniciante no universo dos blogs, admito uma certa angústia em ter firmado um compromisso comigo mesmo de escrever diariamente. Escrever todos os dias é fácil, difícil é escrever coisas interessantes a cada 24 horas. Em geral, cronistas de veículos de comunicação com periodicidade diária sentem isso na pele. É preciso formatar uma idéia sobre alguma coisa todos os dias. Isso significa a necessidade de opinar cotidianamente a respeito dos mais diversos aspectos da rotina social.

Para muitos autores, vivemos a pós-modernidade. Ainda não tenho um conceito fechado sobre o que isso significa, mas percebo que nos tornamos cada vez mais contraditórios em muitos aspectos. Vejam este meu caso particular em relação ao blog, que é apenas uma entre tantas tecnologias de comunicação e informação que nos rodeia e nos leva de roldão. Não queria ter um, mas acabei criando este espaço. Agora, devo escrever diariamente, mas não sei se terei inspiração e tempo suficientes para isso. Aí está o contraditório: criei uma coisa que não tenho certeza se poderei mantê-la como deveria.

E, assim, com essa minha mais recente dúvida existencial, penso em Edgar Morin. Entre as muitas leituras desse primeiro semestre de mestrado na PUC, ainda tento decifrar Morin, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Nestor García Canclini, Manuel Castells, John Sinclair, Renato Ortiz, Guy Debord e muitos, muitos outros. Lembrei de Morin e um trecho de seu O Método 5: a humanidade da humanidade:

“O homem é racional (sapiens), louco (demens), produtor, técnico, construtor, ansioso, extático, instável, erótico, destruidor, consciente, inconsciente, mágico, religioso, neurótico; goza, canta, dança, imagina, fantasia. Todos esses traços cruzam-se, dispersam-se, recompõem-se conforme os indivíduos, as sociedades, os momentos, aumentando a inacreditável diversidade humana... Mas todos esses traços aparecem a partir de potencialidades do homem genérico, ser complexo, no sentido em que reúne traços contraditórios”.